sexta-feira, 6 de maio de 2011

SE MATA

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Capitalismo e Suicídio: a outra face da flexibilização

"As relações capitalistas no mundo do trabalho não envolvem somente uma racionalidade necessária à divisão, organização e gestão do tempo, espaço, das tarefas e das habilidades humanas a serem desempenhadas para produzir, distribuir, vender bens e serviços. Elas implicam a vida emocional dos indivíduos; suas relações pessoais e os vínculos com a comunidade e com grupos sociais mais amplos.

O velho Marx a partir do conceito de alienação já denunciara o quanto o trabalho na sociedade capitalista era agressivo e empobrecedor da vida emocional dos trabalhadores. Em condições sociais capitalistas, o trabalho, a venda da força do trabalho como mercadoria, significava para o trabalhador a mortificação do seu corpo e a ruína do seu espírito, pois nele não encontrava outra finalidade que não a de garantir sua mera sobrevivência. A reprodução de sua vida e energias não difere essencialmente da reprodução e manutenção de outro instrumento produtivo qualquer útil à produção. Numa belíssima passagem de O Capital, afirma Marx: “O que o trabalhador produz para si mesmo não é a seda que tece, nem o ouro que extrai da mina, nem o palácio que constrói. O que produz para si mesmo é o salário; e a seda, o ouro e o palácio reduzem-se para ele a uma determinada quantidade de meios de vida, talvez a um casaco de algodão, umas moedas de cobre e um quarto num porão”.

Há muito, ao menos na maior parte do mundo, as condições de 12 e 16 horas de trabalho da época de Marx foram deixadas pra trás. O capitalismo mudou. As formas de gestão do trabalho também. E, com isso, o problema passa a ser outro. Não mais a redução ou o atrofiamento das qualidades e potencialidades especificamente humanas pelo trabalho em condições capitalistas, mas o excesso de engajamento prático e pessoal que o capitalismo passa a exigir de nós. Exigência que na verdade é apropriação de regiões cada vez maiores de “nosso tempo livre”, de nossa inteligência e capacidades de aprendizado e de relacionamento. No que pese as mudanças, entretanto, o impacto avassalador das relações de trabalho – e de sua organização – na vida emocional das pessoas persiste. Dessa vez de uma maneira mais sutil na aparência, paulatina e disfarçada de liberação das antigas amarras e obstáculos ao exercício da criatividade e da expressão da individualidade; liberação da hierarquia, da rigidez da burocracia, dos males da rotina, do trabalho repetitivo e monótono e da especialização estreita.

Aos trabalhadores pede-se que encarnem em sua atividade todo o seu potencial criativo, todas as suas forças, competências e traços de sua inteligência e personalidade que lhes possam auxiliar em sua nova missão com o intuito de que sejam mais produtivos e úteis à empresa capitalista contemporânea. Para tal, cada trabalhador deve estar o mais aberto possível a mudanças em curto prazo, deve com destemor assumir riscos continuamente e se desprender de leis e procedimentos for­mais quanto ao desempenho de sua atividade. Ele deve enfatizar em seu trabalho uma renovação constante de conhecimentos sob a forma de cursos de “atualização” e “capacitação”. Deve abraçar todas as exigências de flexibilização, não importa se ela é de tempo, de local, de função ou mesmo de trabalho. Acaso não é esse o receituário para o sucesso e êxito profissional que tanto ouvimos de gurus do emprego e marketing pessoal, como o do apresentado no programa Fantástico?

O problema é que a celebração da flexibilização realizada por determinados segmentos da sociedade atual esconde, ou melhor, jogar pra debaixo do tapete, a sua outra face. Há o outro lado da moeda do qual muito pouco se fala. Ao fim e ao cabo, o que devemos perguntar é: a que preço, em termos emocionais, psicológicos e sociais, as pessoas tem obtido, ou tentado, sua adaptação mais ou menos exitosa a esse novo mundo da flexibilização das relações de trabalho? Um dos sintomas concretos a propósito do alto preço que estamos pagando é o aumento drástico do número de suicídios no local do trabalho. Para se ter uma ideia, na China há redes no topo dos edifícios e nas janelas dos andares para se evitar que trabalhadores se arremessem chão abaixo. Outro exemplo é o dado macabro da empresa francesa France Telecom que, entre 2008 e 2009, contabilizou o suicídio de mais de 35 trabalhadores.

Na última terça-feira, um trabalhador de 57 anos da mesma empresa francesa imolou-se voluntariamente pelo fogo no parque de estacionamento da corporação! Ora, o suicídio no local de trabalho não é uma ocasionalidade, uma particularidade sem maior significado. Bem sabemos, como nos mostrou o sociólogo Emile Durkheim com respeito ao suicídio que este muitas vezes é mais do que simplesmente o agregado de atos individuais, ou fruto de uma situação individual particular. O suicídio, como fato social, carrega propriedades padronizadas e passivas de identificação e explicação causal. Nesse sentido, tirar a vida no local de trabalho é ao mesmo tempo uma ação proposital e carregada de conotação – uma mensagem brutal para a sociedade, como um grito – e também uma ação atravessada por padrões sociais objetivos. Como apontam diversos estudiosos do fenômeno, as ondas de suicídios no local de trabalho estão diretamente ligadas à reestruturação profunda das formas de organização laboral do capitalismo flexível; expressa nas novas técnicas e metodologias de avaliação – individual, sobretudo, – do desempenho, da “qualidade total”, outsourcing. Estas funcionam como critérios decisivos para a obtenção de prêmios, promoções assim como para a própria manutenção do emprego.

O imperativo da concorrência não se limita mais a concorrência entre empresas ou sucursais diferentes. Ele penetra no próprio seio do local de trabalho, produzindo uma concorrência interna entre colegas de trabalho e serviços, de sorte que o êxito de um constitui uma ameaça para quem trabalha ao seu lado. O nervosismo e a tensão tornam-se a tônica do ambiente de trabalho. Como conseqüência das transformações da gestão e avaliação do trabalho, os boatos, a retenção e a distorção das informações, inimizades, cinismo e falsidade passam cada vez mais a caracterizar o cotidiano do trabalho. Com isso, os vínculos e os laços sociais de solidariedade se fragilizam, são minados.

Forma-se, assim, um ambiente extremamente propício ao mal-estar, ao sofrimento, ao isolamento e ao desenvolvimento de doenças ligadas ao trabalho. Ao arrasar as antigas formas rígidas da burocracia e desmantelar o aparato estatal de proteção do bem-estar social, o capitalismo flexível dos dias atuais, assim diagnóstica o sociólogo Richard Sennett, enfraqueceu algumas das pré-condições essenciais para a formação do caráter pessoal, isto é, daqueles traços pessoais a que damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem. Essas pré-condições para a construção de um caráter minimamente consistente pressupõem um contexto que brindem as pessoas com segurança e confiança para a definição e busca de metas e ideais à longo prazo. Desse contexto é que resultam certas qualidades como a lealdade, o compromisso mútuo, a solidariedade de grupo, qualidades capazes de criar os laços entre as pessoas e lhes conferir uma identidade e um projeto de vida sustentáveis.

A flexibilização capitalista atual, com sua aversão ao longo prazo, corrói essas bases, tão vitais, segundo Sennett, para construção de uma narrativa coerente acerca de quem somos e de nosso lugar no mundo. Ela tem, portanto, um altíssimo custo psíquico em termos de sofrimento emocional e social para os indivíduos. Em vez de um ambiente de confiança e segurança, o trabalho se torna um ambiente de pura incerteza, instabilidade e desespero no qual somente a competição, a agilidade e a plasticidade tem lugar como medidas do sucesso. Os trabalhadores se vêem, dessa forma, constantemente acuados, em estado de permanente ansiedade e deriva, como que estivessem dentro de um carro desgovernado. Pressionados pelo estresse, impacientes por ganhar e ascender profissionalmente a todo custo, os trabalhadores não tem tempo nem espaço necessários para construir uma identidade com a qual possam com paciência e esmero dedicar-se como ideal de vida. Para os trabalhadores, a flexibilização significa a generalização de uma incapacidade de representar e projetar o futuro em bases relativamente estáveis.

Numa estrutura de total hostilidade à construção da vida e à criação de laços sociais profundos, o que esperar senão a forçosa e conseqüente reprodução de mal-estar, sofrimento e de reações de defesa, como o surto psicótico, o massacre e o suicídio? Pois, não nos enganemos, nessas circunstâncias, o suicídio é, com efeito, uma reação de defesa. Contra o esquema do curto prazo e da flexibilização que lhes toma por completo o tempo presente e futuro, as emoções e a criatividade, de que armas dispõem os trabalhadores para lidar com a pressão, as expectativas, as frustrações e todo o sofrimento ocasionado por um tipo de trabalho com tão grandes e intensas exigências? Que reações esperar em face de uma estrutura competitiva que predispõe milhares de pessoas ao desamparo e ao fracasso ainda que elas estejam empregadas em trabalhos valorizados e bem remunerados?

A conclusão não pode ser outra: o suicídio nessas condições é uma reação de defesa que busca, com efeito, a libertação das condições de vida responsáveis pelo sofrimento e mal-estar, no caso, em particular, as condições de trabalho marcados pela ênfase no curto prazo e na flexibilização. Ele é último ato voluntário de uma vida emocional totalmente esgotada, sugada e deformada. Uma última e desesperada reação somática frente aos desacertos e pressões inerentes à forma de vida capitalista contemporânea com os quais estes indivíduos tiveram de viver dolorosamente e desamparadamente. A flexibilização do trabalho pode até ter substituído a burocracia, mas em seu lugar ela criou uma tanatocracia de suicidas."

Alyson Freire - Graduado em Sociologia e membro do conselho Editorial da Carta Potiguar.

Um comentário:

Tati disse...

postagem com alto nível de relevância!