segunda-feira, 13 de setembro de 2010

O divórcio da humanidade...

Minha irmã está lendo o livro A insustentável leveza do ser de Mila Kundera e me enviou esses trechos por email...
Acho que por que ela imaginou que me identificaria com essas palavras. E realmente, o divórcio da umanidade, ou loucura se preferirem, as vezes fica bem próxima de alguns de nós.

“No começo do Gênese está escrito que Deus criou o homem para reinar sobre os pássaros, os peixes e os animais. É claro, o Gênese foi escrito por um homem e não por um cavalo. Nada nos garante que Deus desejasse realmente que o homem reinasse sobre as outras criaturas. É mais provável que o homem tenha inventado Deus para santificar o poder que usurpou da vaca e do cavalo. O direito de matar um veado ou uma vaca é a única coisa sobre a qual a humanidade inteira manifesta acordo unânime, mesmo durante as guerras mais sangrentas. Esse direito nos parece natural porque somos nós que estamos no alto da hierarquia. Mas bastaria que um terceiro entrasse no jogo, por exemplo, um visitante de outro planeta a quem Deus tivesse dito: ‘Tu reinarás sobre as criaturas de todas as outras estrelas’, para que toda a evidência do Gênese fosse posta em dúvida. O homem atrelado à carroça de um marciano – eventualmente grelhado no espeto por um habitante da Via-láctea – talvez se lembrasse da costeleta de vitela que tinha o hábito de cortar em seu prato. Pediria então (tarde demais) desculpas à vaca.”


“A humanidade é parasita da vaca, assim como a tênia é parasita do homem: agarrou-se a sua teta como uma sanguessuga. O homem é o parasita da vaca, essa é, sem dúvida, a definição que um não-homem poderia dar ao homem em sua zoologia. Pode-se tomar essa definição como um simples gracejo e sorrir com indulgência. Porém pode levá-la a sério e ficar numa posição arriscada: essas idéias são perigosas é podem nos distanciar da humanidade. Já no Gênese, Deus encarregou o homem de reinar sobre os animais, mas podemos explicar isso dizendo que ele apenas emprestou ao homem esse poder. O homem não era o proprietário mas apenas o gerente do planeta, e um dia teria de prestar contas de sua gestão. Descartes deu o passo decisivo: fez do homem ‘maître et propriétaire de La nature.’ Que seja precisamente ele quem nega de maneira categórica que os animais tenham alma, eis aí uma enorme coincidência. O homem é senhor e proprietário, enquanto o animal, diz Descartes, não passa de um autômato, uma máquina animada, uma machina animata. Quando um animal geme, não é uma queixa, é apenas o ranger de um mecanismo que funciona mal. Quando a roda de uma charrete range, isso não quer dizer que ela sofra, mas apenas que ela não está lubrificada. Devemos interpretar da mesma maneira os gemidos dos animais, e é inútil o destino de um cachorro que é dissecado vivo num laboratório.”


“Nos dois primeiros anos que se seguiram à invasão russa, não se podia falar em terror. Já que toda nação desaprovava o regime de ocupação, era preciso que os russos encontrassem entre os tchecos homens novos e os levassem ao poder. Mas onde encontrá-los, uma vez que a fé no comunismo e o amor pela Rússia eram coisa morta? Foram procurar entre aqueles que alimentavam intimamente o desejo de se vingar da vida. Era preciso soldar, alimentar, manter alerta a agressividade deles. Era preciso treiná-los contra um alvo provisório. Esse alvo foram os animais. Os jornais começaram então a publicar uma série de artigos e a organizar campanhas sob a forma de cartas de leitores. Exigia, por exemplo, o extermínio dos pombos numa cidade. Os pombos foram exterminados. Mas a campanha visava, sobretudo, os cachorros. As pessoas estavam ainda traumatizadas com a catástrofe da ocupação, mas os jornais, o rádio, a televisão, só falavam nos cachorros que sujavam as calçadas e os jardins públicos, ameaçando a saúde das crianças, cachorros que não serviam para nada e ainda tinham que ser alimentados. Fabricou-se uma verdadeira psicose. Um ano mais tarde, o ódio acumulado (ensaiado primeiro sobre os animais), foi apontado para seu verdadeiro alvo: o homem. As demissões, as prisões, os processos, começaram. O animais puderam enfim respirar.”
“Nunca se poderá determinar com certeza total em que medida nosso relacionamento com o outro é o resultado de nossos sentimentos, de nosso amor, de nosso não-amor, de nossa complacência ou de nosso ódio, e em que medida ele é determinado de saída pelas relações de força entre os indivíduos. A verdadeira bondade do homem só pode se manifestar com toda a pureza, com toda a liberdade, em relação àqueles que não representam nenhuma força. O verdadeiro teste moral da humanidade (o mais radical, num nível tão profundo que escapa ao nosso olhar), são as relações com aqueles que estão à nossa mercê: os animais. É aí que se produz o maior desvio do homem, derrota fundamental da qual decorrem todas as outras.”


“O mundo deu razão a Descartes.”


“Nietzsche está saindo de um hotel em Turim. Vê diante de si um cavalo e um cocheiro espancando-o com um chicote. Nietzsche se aproxima do cavalo, abraça-lhe o pescoço, e sob o olhar do cocheiro, explode em soluços. Isso aconteceu em 1889, e Nietzsche já estava distanciado dos homens. Em outras palavras: foi precisamente nesse momento que se declarou sua doença mental. Mas para mim, é justamente isso que confere ao gesto seu sentido profundo. Nietzsche veio pedir ao cavalo perdão por Descartes. Sua loucura (portanto seu divórcio da humanidade) começa no instante em que chora sobre o cavalo. Ele se afasta do caminho no qual a humanidade, ‘senhora e proprietária da natureza’, prossegue sua marcha para a frente.”

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Um comentário:

anyoneanywhere disse...

Mega foda! Irado demais! Adorei!

Beijos!